quarta-feira, 18 de agosto de 2010

C D DE ANDRADE




Invocação à mulher única

Tu, pássaro – mulher de leite! Tu que carregas as lívidas glândulas do
(amor acima do sexo infinito
Tu, que perpetuas o desespero humano – alma desolada da noite sobre o
(frio das águas – tu



Tédio escuro, mal da vida – fonte! jamais... jamais... (que o poema receba
(as minhas lágrimas!...)
Dei-te um mistério: um ídolo, uma catedral, uma prece são menos reais
(que três partes sangrentas do meu coração em martírio
E hoje meu corpo nu estilhaça os espelhos e o mal está em mim e a minha
(carne é aguda



E eu trago crucificadas mil mulheres cuja santidade dependeria apenas de
(um gesto teu sobre o espaço em harmonia.
Pobre eu! sinto-me tão tu mesma, meu belo cisne, minha bela, bela garça,
(fêmea



Feita de diamantes e cuja postura lembra um templo adormecido numa
(velha madrugada de lua...


A minha ascendência de heróis: assassinos, ladrões, estupradores, onanistas – negações do bem: o Antigo Testamento! – a minha descendência
De poetas: puros, selvagens, líricos, inocentes: O Novo Testamento
(afirmações do bem: dúvida




(Dúvida mais fácil que a fé, mais transigente que a esperança, mais oportuna
(que a caridade
Dúvida, madrasta do gênio) – tudo, tudo se esboroa ante a visão do teu ventre
(púbere, alma do Pai, coração do Filho, carne do Santo Espírito, amém!
Tu, criança! cujo olhar faz crescer os brotos dos sulcos da terra – perpetuação
(do êxtase



Criatura, mais que nenhuma outra, porque nasceste fecundada pelos
(astros – mulher! tu que deitas o teu sangue
Quando os lobos uivam e as sereias desacordadas se amontoam pelas
(praias – mulher!
Mulher que eu amo, criança que amo, ser ignorado, essência perdida num
(ar de inverno.



Não me deixes morrer!... eu, homem – fruto da terra – eu, homem – fruto
(da carne
Eu que carrego o peso da tara e me rejubilo, eu que carrego os sinos do
(sêmen que se rejubilam à carne
Eu que sou um grito perdido no primeiro vazio à procura de um Deus que
(é o vazio ele mesmo!



Não me deixes partir... – as viagens remontam à vida!... e por que eu
(partiria se és a vida, se há em ti a viagem muito pura
A viagem do amor que não volta, a que me faz sonhar do mais fundo da
(minha poesia



Com uma grande extensão de corpo e alma – uma montanha imensa e
(desdobrada – por onde eu iria caminhando
Até o âmago e iria e beberia da fonte mais doce e me enlanguesceria e
(dormiria eternamente como uma múmia egípcia



No invólucro da Natureza que és tu mesma, coberto da tua pele que é a
(minha própria – oh mulher, espécie adorável da poesia eterna!

Rio de Janeiro, 1938



POSTADO


18 08 10

AS


19:34 HRS

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